Como descobri vestígios de Hades no paraíso

Como descobri vestígios de Hades no paraíso

Pasadena/CA/US
01/05/2019

            Depois de trabalhar por quase 3 anos no Caltech como pesquisador visitante no Departamento de Astronomia, quase as vésperas de retornar ao Brasil, percebo com mais clareza que nossa admiração pelo Olimpo se foca apenas em seus desuses e heróis. Minha experiência de vida acadêmica nos Estados Unidos me mostrou que o grande drama não se desenrola pelos deuses em si ou pelo próprio Olimpo, mas sim pelas ideais de que este se constitui.  

            Quando eu era um graduando do IFSC-USP na cidade de São Carlos costumava jogar conversa fora com amigos sobre como seria o máximo estudar em Princeton, Harvard, Berkeley, Caltech, MIT, etc. Afinal, esses eram lugares classificados como templos sagrados do conhecimento científico. Na realidade não deixaram de ser, mas para ser honesto hoje devo admitir que criamos uma expectativa muito maior do que a realidade. O estudante médio de um curso de Física no Brasil desenvolve uma certa empatia quase mística por essas instituições em grande parte por causa dos grandes e famosos cientistas do passado. Não obstante, essas instituições sejam realmente produtivas e notoriamente eficientes, vemos isso de uma perspectiva muito contrastada. Afinal, é fato notório que nosso país apresenta problemas crônicos no que diz respeito a investimentos em ciência e tecnologia e isso aumenta esse contraste significativamente. Além disso problemas de corrupção e mal gerenciamento de verbas públicas pioram ainda mais a visibilidade da universidade brasileira. Nesse contexto, nos tornamos anões fitando os olhos de gigantes.
            De um modo geral, o ser humano é meio parecido no mundo todo e por conta disso qualquer pais do mundo está sujeito a corrupção e problemas de administração. Nos Estados Unidos a corrupção, embora exista, é bem menor e os gastos públicos são muito melhor gerenciados. Ok, mas isso é tudo?... A resposta é não, isso não é tudo. Afinal muitos países do mundo têm excelente administração pública com baixos índices de corrupção e nem por isso são potências científicas e tecnológicas. Nos Estados Unidos, o grande diferencial reside no fato de que a iniciativa privada suporta praticamente todo o arcabouço tecnológico e científico dos americanos. Dentro dessa realidade, qualquer mística que ampare a ciência tende a ser minimizada. No geral, ninguém por aqui está dando a mínima sobre as bizarrices desse ou daquele cientista famoso ou sobre a grandiosidade dessa ou daquela universidade. Tanto um quanto outro, apenas cumpre seu papel da forma pelo qual foi concebido. Acompanhando a vida escolar de minha filha, percebi que o estudante não se mata de estudar para entrar nessa ou naquela universidade. Entrar em uma universidade específica depende muito mais do dinheiro disponível, já que os grandes templos de sabedoria são muito custosos por aqui. Imagine desembolsar 80 mil dólares por ano para se formar em Física numa Universidade como o Caltech. Então observe como funciona as coisas; quem paga isso por ano não vai querer ser reprovado em matéria alguma jamais, e vai querer sugar todo o conhecimento possível durante todo tempo que estiver estudando. Isso gera um grau de competitividade enorme que praticamente impede o estudante de se dar ao luxo de digamos, “Sair pela tangente”. Quando vou ao restaurante universitário aqui vejo um ambiente muito semelhante a qualquer restaurante universitário da USP por exemplo. Parece até as mesmas caras e os mesmos trejeitos, mas as preocupações são outras. Qualquer ambiente dentro das grandes universidades por aqui é livre de preocupações mundanas do tipo, “Como vou pagar o aluguel do mês que vem? “, ou do tipo, “Será que minha bolsa vai ser renovada esse ano? “. Você nunca assistiu “The Big Bang Theory”?
O estudante médio daqui é rico ou filho de pai rico. Comida e alojamento são de boa qualidade e custam caro. Além disso não tem subsídio do governo. Bolsas e ajuda de custo são restritas a situações extremamente especiais. Quando eu digo extremamente especiais, quero dizer que praticamente não existem. Existem sim, muitos planos de empréstimos e financiamento de estudos para universitários. Mas, tudo é capitalizado de uma forma extrema. Isso define dois aspectos que caracterizam o ambiente universitário dos Estados Unidos: O primeiro é o fato de que a universidade gera seus próprios recursos financeiros e por essa razão ela tem dinheiro para fazer o que bem entender. Por essa razão, tudo dentro da universidade é exuberante, prédios, laboratórios, áreas de lazer, paisagismos, etc. O segundo aspecto é que os estudantes são muito pragmáticos. Eles sabem que isso é um investimento. Sabem o valor do que pagam e porque estão pagando. Na verdade, é quase como se estivessem comprando um produto caro. Ora, quem compra um produto caro quer ter um produto bom, não é mesmo? E nesse caso o produto é realmente bom, pode acreditar. Mas além disso ninguém compra um produto que não quer, ainda mais se esse produto custa muito caro. Ninguém por aqui deixa um cheque vultuoso na tesouraria da universidade, para ficar debaixo de uma arvore fumando cachimbo, pensando na filosofia da ciência, admirando os grandes gênios ou guardando rancores de professores antipáticos. O conhecimento é um produto vendido pela universidade americana, e é um produto muito valioso. Entretanto, se o conhecimento veio de alguém, não importa muito o alguém em si. Importa muito mais o que se faz com esse conhecimento. O resultado disso é em ultima análise construir riqueza. Mesmo um Físico teórico por aqui é muito pragmático. Mas para os Físicos experimentais então, o pragmatismo é muito maior. Onde isso os leva? Bem, eu diria que isso cria uma espiral ascendente da seguinte forma: A ciência avança e gera tecnologia. A tecnologia gerada suporta cada vez mais o avanço científico. Os cientistas investem suas crenças nesse pensamento. Os empresários exploram os produtos que essa tecnologia gera. Matéria prima é cada vez mais usada para produzir esses recursos. Riqueza é criada e distribuída para todos em forma de produtos acessíveis. Enfim, a vida é facilitada para toda a população, incluindo é claro os cientistas.
            Por outro lado, o cientista brasileiro conhece a dificuldade desde o início de sua graduação. Na verdade bem antes disso, mas não quero entrar em aspectos da educação básica. Quando estudante, o cientista brasileiro vive preocupado com o que vai comer, onde vai comer, onde vai morar depois que seu contrato vencer. Além disso nunca sabe se sua bolsa, quando existe, vai ser renovada e sequer se vai continuar existindo com a mudança de governo. Depois de formado, a dificuldade de conseguir um emprego também é um problema endêmico. Mas vamos pular tudo isso e ir direto para a fase em que ele já está trabalhando em alguma instituição. Aí o problema fica sistêmico pois em geral é muito difícil conseguir materiais, instrumentos, e produtos necessários para trabalhar. Tem a dificuldade financeira e também tem a dificuldade estratégica. As instituições de pesquisas em sua imensa maioria são governamentais ou ligadas a universidades estaduais e federais. Consequentemente, estão atreladas a verbas do governo e essas verbas são mendigadas e controladas de forma altamente burocrática.
Além disso, Brasil não produz produtos necessários para compor a maioria dos laboratórios de pesquisa. Por essa razão frequentemente temos de importar coisas e isso acaba sendo um inferno por questões de burocracia. As vezes os projetos esperam anos para serem finalizados e quando são finalmente finalizados já não fazem mais sentido. Só para exemplificar, certa vez um amigo meu que trabalha numa universidade americana me enviou a titulo de doação um frasco de epóxi especial para uso com fibras ópticas. Tratava-se de um pequeno pote de cerca de 200 gramas cujo preço não devia ser mais do que 40 ou 50 dólares. O pote citado foi comprado e adquirido em dois dias e enviado ao Brasil. Levou cerca de uma semana para chegar no Brasil. Recebi um aviso de recebimento e tentei desembaraçar a liberação da encomenda. Trabalhei nesse processo por quase um mês até desistir completamente de obter o material. Foi quase que hilário descobrir que por ter sido qualificado como doação, independente do que fosse e do preço que custasse, eu não poderia liberar o material sem contratar uma empresa aduaneira pagando para isso uma pequena fortuna e esperando cerca de 3 meses. Devo esclarecer que nesse período o epóxi já estaria solidificado tendo em vista que as condições de estocagem não eram de forma alguma adequadas. Na sequencia, foi necessário dispender quase 9 meses para fazer um processo de importação legalmente estabelecido. Isso era apenas um epóxi plástico. Imagine produtos bioquímicos que se degeneram em menos de uma semana. Não vou nem falar de componentes estratégicos que sofrem restrições de órgãos que você nunca vai ouvir falar na sua vida. Claro que as vezes a restrição é dos países de onde se está importando o produto. Para alguém acostumado com esse inferno, trabalhar nos Estados Unidos é como mudar do vinagre para o vinho. Praticamente as tarefas se resumem ao trabalho de serem realizadas. Da mesma forma, o tempo de uma tarefa se resume praticamente ao tempo do trabalho da tarefa. Ninguém fica muito preocupado com problemas do tipo, “temos de aguardar um ano para importar isso ou aquilo”. O trabalho se fecha no trabalho e é possível aplicar toda a energia física e mental na realização desse trabalho. Isso explica em grande parte, porque as ideias se tornam realidade nos Estados Unidos e porque as ideias morrem no Brasil. O processo de transformar ideias em realidade no Brasil é extremamente cansativo e aborrecido. Mesmo assim, ainda há quem tente e até consiga. São aqueles anjos que insistem em trabalhar no inferno. Graças a eles, o inferno ainda tem alguma esperança de ser transformado algum dia. Mas eu não estaria sendo honesto se deixasse de dizer que os demônios também rondam o paraíso. Os problemas são de outra natureza, mas analogamente podem transformar o paraíso algum dia. Ironicamente, a fartura tecnológica americana poderá ser um dia sua ruina. A quantidade de recursos materiais desperdiçados é incrivelmente alta. Laboratórios inteiros são erguidos do dia para a noite só para serem desmontados em dois ou três anos no final de uma pesquisa. Equipamentos se tornam obsoletos simplesmente porque deixam de serem novinhos em folha e são esquecidos em porões ou áreas de estocagem. Materiais e produtos são adquiridos em quantidades exageradas e sem necessidade as vezes. Computadores são substituídos antes de ficarem velhos pois se tornam obsoletos em questão de meses. Existe uma dependência cada vez maior de adquirir seus insumos e produtos através da importação. Por mais paradoxal; que isso pareça é o que vem acontecendo. A maior parte dos produtos tecnológicos adquiridos pelo consumidor nos Estados Unidos vem de fora do país. É mais barato para um empresário americano montar uma indústria na China pois se paga muito menos imposto. Os impostos de importação pago pelos cidadãos americanos são praticamente irrelevantes. Dessa forma, é muito comum observar que quase tudo que se compra atualmente vem de outros países. Assim é com roupa, utensílios domésticos, eletrodomésticos e acredite se quiser equipamentos científicos e tecnológicos. Em última análise, existe uma forte tendência de desindustrialização a médio e longo prazo. Essa talvez seja uma das preocupações de alguns políticos emergentes nos Estados Unidos, mas certamente não tira o sono de nenhum cientista americano.
            Mas afinal, como ficaram meus anseios pelos grandes templos da ciência e pelos grandes cientistas. Nos dias atuais, ainda acho importante dar o devido valor histórico aos grandes gênios da humanidade pois foram eles que inicialmente nos mostraram o caminho. Também continuo valorizando os grandes templos de pesquisa e conhecimento, pois no mínimo eles podem nos ensinar alguma coisa sobre como administrar e gerenciar a continuidade e transferência de conhecimento. Contudo, acredito cada vez mais que o mais importante são as ideias e o que fazemos com elas. Estivemos observando os deuses e os heróis por tanto tempo que acreditamos que eles são a fonte de todas as virtudes do Olimpo, quando na verdade, deveríamos crescer além dessa crença porque podemos nós mesmos alcançar essas virtudes.



 “Seja menos curioso sobre as pessoas e mais curioso sobre as ideias. “
                                                                                                                         Marie Curie



 “Saber muito não lhe torna inteligente. A inteligência se traduz na forma que você recolhe, julga, maneja e, sobretudo, onde e como aplica essa informação. “
                                                                                                                         Carl Sagan
















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